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Foto do escritorRemo Bastos

O mito da "responsabilidade fiscal"

Atualizado: 1 de out.





Este artigo foi publicado há quatro anos, mas suas premissas e conclusões são atualíssimas!


Coloca em cheque de forma contundente todo o construto ideológico calcado na obsessão pela "responsabilidade fiscal", que é a base da política econômica de quase todos os governos do mundo ocidental, Brasil incluído.


O texto mostra claramente que todos os segmentos sociais prejudicados pela imposição férrea dessa manobra ideológica (desde servidores públicos a organizações de defesa do meio ambiente e inúmeros outros grupos sociais que precisam da atuação firme do Estado) precisam tomar conhecimento das abordagens econômicas que denunciam essa manipulação.


É hora de acordar do atual marasmo ideológico!


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Para entender a disputa política em torno da capacidade do governo emitir moeda

Existe uma única circunstância que pode produzir uma fissura neste monopólio pétreo da riqueza acumulada em mãos privadas: que o Estado, por meio de políticas públicas bem concebidas e implementadas, decida criar demanda, seja fazendo obras públicas, seja pagando mais ou contratando mais profissionais da Educação, da Saúde e dos serviços públicos de uma maneira geral.

 

"O Meu Caminho para a Fogueira dos Hereges", por João Furtado (economista e professor)

 

Este texto tem o propósito de ajudar a destrinchar um dogma pétreo do conhecimento dominante no debate público de economia, mas ele vai pavimentar o caminho que inexoravelmente leva à fogueira onde o mundo é purificado pela dor e a eliminação dos hereges.


Mas esse meu caminho demanda um preâmbulo. Vamos lá.


A minha amiga Giséle Guimarães, que conheço há 40 anos, profissional da área de Saúde, pediu esclarecimentos sobre a frase de um economista polonês (Michal Kalecki, contemporâneo de Keynes, falecido em 1970) que eu mencionei e isso ofereceu a oportunidade de escrever para outros amigos que se interessam pelos temas da economia e da sociedade e não possuem formação profissional na matéria. Poderia começar aqui com a frase de Kalecki, mas preferi explicar antes e “citar” em seguida.


Vivemos numa economia mercantil, ou seja, “de mercado”. O arroz que comemos no almoço é o resultado do esforço de outro produtor. Ao vendê-lo, o agricultor pode comprar insumos para o próximo ciclo produtivo e levar para casa um par de botinas para o filho. O sapateiro compra mais couro para sapatos e alimentos para a família e dá prosseguimento à teia de relações mercantis, que se estende indefinidamente. Pagamos todos os produtos que consumimos com aquilo que temos. E a maioria de nós tem uma única mercadoria para entregar ao mercado: trabalho. É esse o mundo “mercantil” em que nascemos e vivemos.


Mas nenhum de nós, que vivemos do nosso próprio trabalho vendido no mercado (por diferentes tipos de contrato – CLT, PJ, informal), detém realmente o poder de vender a sua mercadoria, o seu trabalho. Nós temos o desejo de vender, mas é o possível comprador que decide se vai comprar (ou não). Nós precisamos vender, ele pode comprar. A relação de compra e venda é assimétrica: quem tem o dinheiro tem mais poder. Nenhuma mercadoria recusa o dinheiro, mas o dinheiro recusa muitas mercadorias. O dinheiro compra qualquer mercadoria e o “empresário”, ou detentor de capital (“capitalista”) pode comprar muitas mercadorias e contratar muitos trabalhadores, mas também pode comprar e contratar menos. Ou nenhum. Ele pode adiar as suas compras, enquanto o trabalho precisa (quase sempre urgentemente) vender-se para alcançar o fim do próximo mês. É assim que vivem 90, 95 ou 99% das pessoas que você e eu conhecemos. (A exceção são os herdeiros, os rentistas e os capitalistas). As consequências desta assimetria são cruciais.


Uma vez que são os empresários, em seu conjunto (embora de maneira não coordenada), que definem quanto vão produzir, são eles que determinam o nível do emprego (e, portanto, o nível do desemprego). É comum que ostentem com orgulho a sua contribuição social, “gerando empregos”, mas uma vez que só eles têm os meios (a riqueza acumulada e o acesso ao crédito) para gerar empregos, eles deveriam mais apropriadamente reconhecer, com humildade, o fato de gerarem tanto desemprego. Enquanto houver monopólio de um grupo social de todos meios de produção e do acesso ao crédito, as contribuições individuais à geração de emprego terão que ser confrontadas com a insuficiência dos empregos, que se mede com a “taxa de desemprego”. Os empresários e os capitalistas estão em condições de determinar o nível da atividade econômica, por meio das suas decisões sobre quanto produzir (com as capacidades de produção que já possuem) e sobre quanto investir (em novas capacidades de produção).


Ao determinarem o nível de atividade econômica, os empresários, ou os capitalistas, determinam um dos parâmetros fundamentais do nível de bem-estar e de mal-estar da sociedade. E sempre haverá pessoas dispostas a trabalhar. Afinal, como teria dito Bloomberg ao ser perguntado a respeito da motivação dos seus “colaboradores”: “Simples. Eles precisam de três refeições por dia”. [“How do you motivate someone?” Bloomberg is said to have said. “Simple. Are they addicted to three meals a day?”]. O poder de criar ocupações (ou empregos) não está nas mãos da sociedade, ele passou a ser detido, desde que cada um de nós passou a depender da venda do trabalho para comprar arroz e feijão, por um grupo de pessoas que comandam a produção e todos os recursos produtivos, assim como o acesso a novos recursos produtivos, por meio do acesso ao crédito.


Afinal, todos sabemos que tem crédito quem tem dinheiro, um paradoxo aparente que não tem nada de paradoxal, pois afinal o banco e o sistema financeiro dão o crédito àqueles que possuem riqueza passada e muito boas perspectivas de produzirem mais riqueza no futuro, pois são eles que possuem garantias reais para oferecerem como contrapartida, caso alguma coisa se passe em desacordo com o planejado. Dito de outro modo, os capitalistas possuem o monopólio da riqueza presente e também, por meio do crédito, o monopólio da riqueza futura. Você e 99% das pessoas vende o trabalho, se e quando o 1% deseja comprar.

Existe uma única circunstância que pode produzir uma fissura neste monopólio pétreo da riqueza acumulada em mãos privadas: que o Estado, por meio de políticas públicas bem concebidas e implementadas, decida criar demanda, seja fazendo obras públicas, seja pagando mais ou contratando mais profissionais da Educação, da Saúde e dos serviços públicos de uma maneira geral. Nesse caso, o Estado cria – diretamente e indiretamente – empregos. (Diretamente, contratando profissionais, para as obras públicas ou para os serviços públicos. Indiretamente, pelo efeito das compras que os contratados realizam.)


Ora, se o Estado pode contratar pessoas e se pode gerar demanda, os “empresários” ou “capitalistas” perdem o poder de monopólio que possuem na determinação do nível de emprego. Quando são eles, com exclusividade, que determinam o nível de emprego da economia, estão por isso em posição de demandar condições que consideram adequadas para produzirem e empregarem mais. Podem demandar, por exemplo, que os impostos sobre as empresas sejam inferiores aos que incidem sobre as pessoas e sobre o consumo; ou que as regras trabalhistas sejam tais que as empresas possam demitir com facilidade; podem mesmo determinar que recebam parte dos impostos para com eles “formarem a mão-de-obra” de que as suas empresas precisam.


É claro que estes exemplos não são hipotéticos, são totalmente baseados na experiência brasileira, e só parecem absurdos porque não ocorreria a nenhum cidadão razoável e cujo aparato cognitivo não esteja condicionado pelo império da informação e das análises construídas pelo sistema dominante, que as alíquotas dos impostos das empresas sejam menores do que os das pessoas; ou que os interesses coordenados pelo prédio decadente do número 1313 da avenida Paulista possam capturar a política econômica do governo, impondo-lhe uma agenda que lhe era estranha [como mostrou Laura Carvalho, no seu Valsa Brasileira], ou que a formação dos trabalhadores seja uma atividade comandada pelos donos das empresas, com dinheiro público, há quase 80 anos, e não pelas políticas educacionais dos governos [Quem quiser saber mais sobre isso, leia “Tempos de Capanema”, de Simon Schwartzman e outros autores; ou “(Re)formação da classe trabalhadora no Brasil”, de Barbara Weinstein, uma brazilianist estadunidense de grande valor].

 

Qual é o limite para que o Estado possa criar empregos e cobrir o déficit de empregos, empregando os milhões de pessoas desempregadas? O limite é a sua capacidade de gastar. E vem daí, então, o truque mais decisivo de todos: manter limitado o gasto dos governos, impedindo-os de rivalizar com o capital no processo de criação de empregos. O Estado pode gastar menos ou mais do que arrecada. A rigor, não há limite financeiro para o que o Estado pode gastar. O único limite existente não tem nada de financeiro, é material, físico, de disponibilidade de recursos produtivos – terra, trabalho, matérias-primas, tecnologia, capacidade de transformar esses elementos materiais em produtos para o consumo. 


Portanto, desde que o sistema econômico seja capaz de produzir aquilo que o Estado gasta e que as pessoas demandam, a capacidade de gasto adicional dos governos é ilimitada. Repetindo: ilimitada. Aliás, como é ilimitada a capacidade de gasto dos capitalistas: quando, em uma fase de prosperidade, eles decidem investir em novas capacidades produtivas, e todos eles, ao mesmo tempo, compram máquinas, constroem edificações, contratam pessoas, encomendam mais matérias primas e materiais, sem que seja necessário que alguém deixe produzir ou de consumir para que isso ocorra – pelo contrário. O sistema tem capacidade de responder às demandas adicionais produzindo mais, sejam itens de investimento, sejam itens de produção corrente, sejam bens de consumo.


É isso que torna o sistema econômico capitalista tão vigoroso. Alguém cogita que uma empresa deixe de investir porque a sua concorrente investiu e por isso não haverá recursos?


É precisamente o inverso que ocorre: quando uma empresa começa a esboçar intenções de investimento, as suas concorrentes investem também, porque a última situação que elas desejam enfrentar é aquela em que uma demanda adicional é suprida por seus concorrentes, se ela própria não tiver capacidade produtiva suficiente. Por isso, o investimento em setores com algum grau de concorrência ativa possui um “efeito manada” – um vai, todos vão. Os efeitos que uma empresa e todas as empresas desse setor sentem, todos os demais setores sentem também. A bonança típica das fases expansivas espraia-se e generaliza-se, fazendo com que muitos setores invistam, mesmo que isso não ocorra na mesma intensidade e em perfeita sintonia. Mas os investimentos ocorrem em simultâneo.


Alguém imagina que faltem recursos – físicos ou financeiros – para esses investimentos? Claro que não, porque a fragilidade do sistema econômico capitalista não está (ou raramente está) do lado da oferta, que pode crescer a taxas elevadas, mas quase sempre do lado da demanda, que sistematicamente se mostra insuficiente para ocupar plenamente as capacidades produtivas acumuladas. Por todas estas razões, é difícil conceber que o Estado só possa gastar aquilo que arrecadou, que é outra forma de dizer que ele só pode demandar (com o dinheiro dos impostos) aquilo que as empresas e as famílias deixaram de demandar (ao pagarem impostos).


Essa imposição contábil indemonstrada (e indemonstrável) incorre no erro elementar de confundir as leis que regem o funcionamento do sistema econômico com as restrições materiais (e físicas) que limitam os gastos e o consumo das famílias ou das pequenas unidades de produção. Nas famílias, com orçamentos dados pelos rendimentos dos seus membros, o consumo além do limite orçamentário de hoje representa endividamento e redução de consumo futuro (para pagar as dívidas).


Nas famílias, o endividamento para trocar o refrigerador impõe reduções de gastos de consumo no futuro. Nas pequenas unidades de produção, como as da agricultura familiar sem acesso a crédito e a progresso tecnológico, as capacidades de produção são limitadas e o consumo presente (por exemplo, de uma galinha, cabra ou vaca) representa menos consumo futuro (pintos, cabritos ou bezerros). Em ambos os casos, seja da família ou da pequena propriedade com escassez de recursos, o consumo presente conspira contra o consumo futuro.


No sistema econômico capitalista, com a sua imensa capacidade de mobilizar, quando convocados, os recursos ociosos (para começar, os milhões de desempregados e os ocupados em atividades improdutivas), essa limitação simplesmente não existe. E mesmo quando existe, ela será momentânea, pois as pressões de demanda (mais consumidores querendo comprar), que se refletem em alguns preços, desencadeiam respostas que modificam as condições de produção, com intensificação do progresso tecnológico e remoção das restrições, aumentando com isso a oferta de produtos nos mercados.


Em alguns casos, este processo é muito rápido, em outros casos leva mais tempo. Mas é difícil encontrar exemplos de situações em que a escassez de recursos tenha provocado o colapso da economia ou mesmo apenas a interrupção do seu crescimento. Portanto, numa economia capitalista estruturada com atividades diversificadas, os investimentos podem ocorrer sem sacrifício do consumo.


Mas de onde vêm os recursos financeiros que os capitalistas empregam para aumentarem, quase sempre de modo simultâneo (nas fases de prosperidade do ciclo econômico), os seus investimentos em produção adicional? Da sua capacidade de endividamento, não de suas reservas financeiras (lucros acumulados ou “poupanças”, como são vulgarmente chamados). E os bancos (ou o sistema financeiro) são capazes de criar esses recursos, por operações sucessivas de multiplicação de depósitos em créditos. E quanto mais houver demanda por recursos financeiros para bons projetos, mais créditos poderão os bancos criar. Alguém cogita que para uma empresa tomar um empréstimo de um banco outra empresa (ou indivíduo) terá que poupar? Claro que não.


Tanto quanto os empresários e capitalistas podem gastar recursos adicionais e o sistema se encarrega de produzir quantidades adicionais de mercadorias, o Estado também pode gastar mais, sem que isso produza escassez de recursos e inflação. O Estado pode transferir R$ 100 ou R$ 1000, em parcelas únicas, ou R$ 1000 mensais recorrentemente a cada pessoa ou família sem recursos, tendo ou não o governo dinheiro de impostos. Ele simplesmente faz um crédito na conta de cada beneficiário. Com uma diferença importante com relação às empresas: o Estado possui capacidade emissora, não precisaria ser um endividamento como é o caso das empresas.


Aí vem a pergunta que fazem todas as pessoas a quem o conhecimento difundido aprisionou em seus dogmas e crenças: mas isso gera inflação? Sim, pode gerar inflação, mas somente se as pessoas forem ao mercado e não encontrarem produtos para comprar. Mas a inflação não é um produto inexorável da criação de dinheiro. Não haverá inflação se o dinheiro adicional for ao mercado e houver produtos. Não é o dinheiro (impresso, eletrônico, crédito na conta – não importa) que gera elevações nos preços. O que gera elevações nos preços, que podem ser momentâneas (flutuações) ou cumulativas (inflação) é uma eventual incapacidade do sistema produtivo de produzir mais. Mas então, por que razão o postulado difundido tão amplamente e tão enraizado nas crenças coletivas aparece na forma simples dinheiro gera inflação?


A ausência nesta passagem (mais dinheiro leva a inflação) do estágio intermediário que é o reino das mercadorias, dos mercados e das capacidades de produção é sumamente intrigante. Qual é a razão desta lacuna? Por que se diz que mais dinheiro é igual a mais inflação? A manobra ilusionista precisa crucialmente da lacuna no encadeamento lógico “mais dinheiro” leva a “maior nível de demanda” que leva a um “maior nível de preços” se e somente se “não houver resposta dos produtores aumentando a sua oferta”.


O encadeamento lógico correto e rigoroso, sem malabarismos e ilusionismos, imediatamente suscitaria a questão de saber por que os produtores não aumentariam os seus esforços produtivos e a sua oferta de produtos e serviços para com isso auferirem lucros. Por que haveria essa incapacidade de produzir mais se há milhões de pessoas desocupadas querendo trabalhar e muitos outros recursos produtivos? A pergunta de primeiro nível que decorre imediatamente da proposição aponta para a resposta: é necessário mobilizar recursos produtivos ociosos, identificando dificuldades pontuais e superá-las, formando pessoas, implementando políticas de fomento ao desenvolvimento e à incorporação de tecnologias, melhorando acesso ao crédito, capacitando empreendedores para se tornarem empresários, construindo canais de comercialização.


Nada disso é inédito e integra as políticas públicas de muitos países onde o desemprego de pessoas é reconhecido como um custo social para as próprias vítimas e para a sociedade toda. O bem-estar, que tantas sociedades dizem perseguir, ou é compartilhado por todos ou não pode ser considerado bem-estar.


Além de não produzir aumentos de preços recorrentes e inflação, gastos adicionais orientados por políticas públicas bem desenhadas e adequadamente executadas podem mesmo resultar em reduções sistemáticas de preços e desinflação. Um exemplo que pode ajudar a cristalizar a ideia com elementos de realidade concreta é o da agricultura de pequenos produtores (responsáveis por aproximadamente ¼  da produção agrícola no Brasil).


Há no Brasil 5,3 milhões de produtores rurais, como mostra o IBGE. 4,8 milhões são pequenos produtores, quase sempre abandonados à própria sorte, sem acesso ou com acesso limitado a equipamentos apropriados, recursos financeiros, canais de comercialização bem desenhados, além de assistência técnica sistemática. É uma energia produtiva imensa, com resultados muito aquém do possível. Ofereça-se crédito (com ou sem impressão de dinheiro), contratem-se agrônomos e técnicos agrícolas para levarem conhecimentos e técnicas mais modernas e adequadas, financiem-se equipamentos e insumos, meios de transporte dos produtos – e haverá aumentos de produção substanciais, ganhos de produtividade (mais com menos) e portanto redução dos preços dos produtos agrícolas, com aumento simultâneo de rendimento dos produtores rurais e do poder (real) de compra das famílias urbanas. Todos os “dinheiros” que elevam a capacidade produtiva da economia ou que estimulam (indiretamente) essa elevação são não inflacionários ou francamente desinflacionários. É simples assim. Abandone o pensamento ordinário. Faça-se esse favor: liberte-se dos dogmas que aprisionam e que limitam as escolhas da sociedade à frustração do “quase nada é possível”. É ele que faz com que todos os governos se pareçam muito e que a desilusão da sociedade só aumente.


Cabe àqueles que sustentam dogmaticamente a crença de que mais dinheiro gera inflação o ônus de explicar a sua tese. Nós, ao contrário, sustentamos a seguinte proposição elementar e lógica: enquanto existirem recursos ociosos mobilizáveis para um uso produtivo, gastos adicionais são possíveis – e desejáveis – até que o sistema alcance um emprego produtivo e remunerado para todas as pessoas que desejam trabalhar. Todas. E se algumas não são imediatamente empregáveis, as políticas públicas poderiam – e deveriam – elevar a capacidade de formação de pessoas para torná-las empregáveis produtivamente. E o emprego produtivo deveria incluir um esforço de ampliação de sua abrangência.


Quem negará que os cuidados com os idosos e as crianças seja um trabalho produtivo imensamente relevante? O reconhecimento disso orientou o último acordo coletivo dos operários metalúrgicos alemães e a sua magnífica jornada de 25 horas semanais. É isso que aponta para um futuro viável – para a Humanidade e para o Planeta.


Então, qual é a razão para 9999 comentadores dizerem que o orçamento público precisa ser equilibrado e que se não o for coisas terríveis acontecerão em nossas vidas e todos nos arrependeremos disso amargamente pelo resto de nossas vidas e seremos amaldiçoados até o quinto dos infernos? Por duas razões, uma razão de natureza econômica e outra de natureza política.


A econômica: porque os detentores do capital, coletivamente monopolistas das capacidades de produção da sociedade, desejam delimitar as ações do governo, de todos os governos, qualquer governo, seja ele dócil ou hostil, e deles extrair sempre as melhores condições para o exercício de suas atividades. Se você tem alguma dúvida, basta lembrar a chantagem que o senhor Skaf, um ex-industrial que se tornou mais um rentista e usurpou de modo permanente a representação da indústria para deter o poder absoluto do número 1313 da avenida Paulista, fez com o governo federal e a presidente Dilma no início do primeiro mandato, exigindo incentivos e desonerações que fariam elevar os investimentos (e o nível de atividade econômica).


A chantagem, que para os ouvidos ingênuos era canto de sereia, não trouxe de volta os investimentos das empresas, mas assegurou-lhes generosas reduções de custos (correspondentes à arrecadação perdida pelo governo) e aumentos dos lucros. Mas além desta razão econômica há também a razão política: uma sociedade em pleno emprego permanente suscita nos trabalhadores ideias subversivas terríveis, como o desejo de fazer alguma coisa que não seja correr de manhã cedo para o trabalho e voltar exausto à noite, afundar no sofá, para quem o tem, e consumir, ou sonhar em consumir, o que a publicidade manda; ou quem sabe até – vejam o cúmulo – pleitear a redução da jornada de trabalho diária ou o número de dias trabalhados, ou ambos, criando com isso vagas para a imensidão de pessoas sem trabalho remunerado; ou a vontade de melhorar o ambiente e as relações de trabalho.


É evidente que esses pensamentos são terrivelmente subversivos. Portanto, para evitar os perigos dessas ideias tão perigosas para o sistema, ao invés de trabalhamos todos jornadas de 30 horas semanais, ou 25 (como os operários alemães com crianças e idosos a seu cargo), é muito mais conveniente trabalharmos 40 ou 50 e mantermos 20 milhões de pessoas à espera de sua chance – qualquer chance.


A “doutrina da finança (pública) saudável”, ou do “orçamento público equilibrado”, não é verdadeiramente uma teoria econômica ou a conclusão lógica de uma teoria. É apenas um postulado convenientemente convertido em dogma e sacralizado pelos economistas sérios e pelos vulgarizadores de suas proposições. Apenas isso. E o postulado será tão mais conveniente quanto mais pessoas acreditarem nele e temerem que a transgressão levará a economia à balbúrdia. Por isso, a sacralização do princípio de que não pode haver déficit público é a mais poderosa arma de dominação social e política que o aparato ideológico do sistema produziu e sustenta a ferro e fogo. Por isso, à fogueira os infiéis!


Antes que os amigos com coração de esquerda ou simplesmente heterodoxos fiquem assanhados com tanta água a correr em seu moinho, é preciso reconhecer, como fazem pessoas muito sensatas do campo conservador, que os projetos de “vontade política” que pretenderam e pretendem elevar o gasto público sem considerações de natureza produtiva e tecnológica podem, sim, ser inflacionários, se não entregam as suas promessas (produção) em prazos condizentes. Pior ainda, esses projetos da vontade sem mais nada podem desestruturar seriamente atividades econômicas.


A vontade política pode ser um ponto de partida para melhor organizar algumas atividades econômicas e alguns mercados, de preferência poucos, promovendo a prosperidade e o bem-estar para um patamar superior, quando isso é desejável e possível, mas a execução de tal política demanda muitas tarefas e cuidados, com labor, com inteligência, com conhecimento, com as lições da experiência, sob pena de inflação e de conturbação. E nenhuma “vontade política”, por maior que seja, pode contornar esses condicionantes sem grandes riscos.


Eis o trecho de Kalecki que motivou esta explicação e desdobramentos associados:


Sob um sistema de livre mercado, o nível de emprego depende, em grande medida, do chamado estado de confiança. Se isso se deteriora, reduz-se o investimento privado, o que resulta numa queda da produção e do emprego (tanto diretamente como através do efeito secundário da diminuição dos rendimentos sobre consumo e investimento). Isto dá aos capitalistas um poderoso controle indireto sobre a política governamental: tudo o que pode abalar o estado de confiança deve ser evitado porque isso causaria uma crise econômica. Mas uma vez que o governo descobre o truque de aumentar o emprego por suas próprias compras, este dispositivo de controle poderoso perde a sua eficácia. Daí déficits orçamentários necessários para realizar a intervenção do governo devem ser considerados perigosos. A função social da doutrina das “finanças saudáveis” é fazer com que o nível de emprego dependa do estado de confiança.


[Para quem quiser, o ensaio de Kalecki está publicado no Brasil em uma coletânea da Hucitec, intitulada Crescimento e Ciclo das Economias Capitalistas. Para quem prefere ler online, pode ser lido aqui.


(Todo este longo argumento vale para situações normais – valia em 1980, em 2000, em 2019. Em 2020, frente ao colapso econômico que está sendo produzindo o nosso ministro talibã, empenhado na destruição da economia para obrigar os mercados a funcionarem como nas suas alucinações arcaicas, até mesmo 9998 dos 9999 economistas ortodoxos fariam muito melhor. Até Mailson, Meirelles e Palocci fariam melhor!)


 

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Em 30 agosto 2023 foi publicado um livro importantíssimo que desvela didaticamente como realmente funciona o sistema monetário de um país que tem soberania monetária (como é o caso do Brasil), exatamente da forma esboçada no artigo acima. Trata-se de "O Mito do Déficit", escrito por Stephanie Kelton, economista estadunidense que foi assessora econômica do Senador Bernie Sanders, pre-candidato à presidência da república dos EUA em 2016.


Eu li o livro tão logo ele foi publicado nos EUA, e escrevi uma resenha dele, em texto de fácil leitura, acessível a qualquer cidadão minimamente letrado. A resenha pode ser lida aqui.


Em agosto de 2024 lancei um curso sobre a Teoria Monetária Moderna (MMT), tendo esse livro como a base do curso. Para saber mais sobre esse curso, clique aqui.



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