Sempre que, no início de cada trimestre do ano, o IBGE divulga na imprensa o resultado do crescimento (ou decrescimento) do PIB do trimestre anterior, presenciamos nas redes sociais discussões acaloradas em torno do “êxito” (ou “fracasso”) do governo de plantão em produzir esse resultado.
A dimensão quantitativa do PIB, em cifras ou percentuais, exerce sobre a maioria da população uma noção equivocada da aplicabilidade desse indicador para aferir o grau de desenvolvimento de um país, além de não dar conta de aspectos qualitativos não quantificáveis (que os economistas chamam de “externalidades”) tais como danos ao meio ambiente, distribuição de renda e qualidade de vida.
Neste post me concentrarei no primeiro equívoco, o da aplicabilidade desse indicador para aferir o grau de desenvolvimento de um país.
Segundo o IBGE, o PIB é a soma monetária de todos os bens e serviços finais produzidos por um país, estado ou cidade, geralmente em um ano, expressa em suas respectivas moedas.
Mostrarei que a comparação imediata e direta dos valores de PIB de dois países é potencialmente enganosa, podendo levar a entendimentos distorcidos quanto ao grau de desenvolvimento econômico desses países.
Tomemos um exemplo utilizado no excelente livro "Brasil, uma economia que não aprende", de autoria de Paulo Gala e André Roncaglia.
Eles mostram o quão equivocada pode ser a simples comparação numérica dos PIBs de Cingapura e Paquistão, ambos com praticamente o mesmo valor monetário.
Logo de saída observam os autores que o Paquistão é 34 vezes mais populoso do que Cingapura, sendo portanto muito mais pobre em termos de PIB per capita. Notam também que diversidade da pauta de exportação do Paquistão e de Cingapura é praticamente a mesma: ambos os países exportaram aproximadamente 133 produtos distintos em 2014.
Todavia, existe um fator que diferencia os dois países, em favor de Cingapura, que constitui a pedra de toque do que pretendo elucidar no presente artigo: o nível de complexidade da economia.
No caso desses países, o indicador de complexidade econômica (ECI) é bastante diferente entre os dois: em 2014 o Paquistão tinha uma complexidade econômica de -0.75 e Cingapura de 1.40, atestando que o grau de sofisticação dos produtos exportados pelo segundo país era bem maior do que o do primeiro, nesse ano. Os produtos exportados pelo Paquistão (tecidos, toalhas e lençóis principalmente) são também exportados por países que têm pautas de exportações pouco diversificadas, enquanto que os produtos exportados por Cingapura (máquinas, computadores e circuitos integrados) são exportados por países concorrentes com exportações diversificadas e de produtos "raros" (não tão fáceis de encontrar). Fica claro que o grau de complexidade e valor agregado nos produtos exportados por Cingapura é bem mais elevado do que os exportados pelo Paquistão.
Torna-se fácil perceber então que os setores econômicos de mais complexidade, diversificação e valor agregado (indústrias e serviços de alto valor) são os que podem levar um país a um grau de desenvolvimento econômico e social comparável ao dos países do hemisfério norte.
Insistir em uma matriz produtiva e de exportações calcada meramente em produtos primários (agricultura e atividades extrativista), com típica estrutura de competição perfeita (ou seja, uma concorrência encarnecida entre países exportadores, o que tende a diminuir mais ainda os preços praticados, ficando sujeitos às oscilações de mercado), baixo teor de pesquisa e desenvolvimento incorporado nos produtos, baixo grau de inovação tecnológica e informação perfeita, é a receita certa para o subdesenvolvimento de um país. Infelizmente, esta tem sido a opção do nosso país, em franco processo de desindustrialização nos últimos 30 anos, como um subserviente “bom aluno” do Consenso de Washington [Vide nota de rodapé 1].
Portanto, dois paises que em determinado momento apresentam a mesma magnitude numérica do PIB mas com a composição de suas estruturas produtivas diferentes, a do primeiro privilegiando atividades industriais e de serviços avançados, e do segundo resignando-se a atuar apenas nos setores primários (agricultura e extrativismo), conseguirão diferentes perfomances de desenvolvimento economico e social, com o primeiro se distanciando do segundo muito à sua frente. Isso foi exatamente o que ocorreu com a China e o Brasil, no incio dos anos 1980, ano em que nosso país iniciou um processo de estagnação econômica culminando com a acentuada desindustrializaçao que despontou nos anos 1990.
Conforme já deixamos claro em trabalho anterior (BASTOS, 2023), todos os países que atingiram níveis elevados de desenvolvimento econômico e social adotaram inicialmente estratégias de proteção à sua indústria embrionária com barreiras tarifárias e forte apoio do Estado em tudo que fosse necessário para o florescimento, o desenvolvimento e a consolidação dos setores estratégicos de sua economia, passando a praticarem um comércio mais aberto e pregarem o livre-comércio somente após atingirem suas respectivas supremacias industriais. In verbis:
Portanto, fica claro que os países desenvolvidos se industrializaram porque, por décadas ou mesmo séculos, os seus Estados e as suas elites tiveram a lucidez e a perspicácia de subsidiar e proteger as suas indústrias infantes, não dando ouvidos ao panegírico do livre mercado astutamente entoado por nações à época já industrializadas, ao contrário, procurando emular a concreta e historicamente comprovada estratégia dessas nações. Em outras palavras: compreenderam a necessidade estratégica e soberana de manter, por alguns anos ou mesmo décadas, indústrias ineficientes, enquanto estas não adquirissem a eficiência, porquanto é muito mais lúcido estrategicamente para um país subsidiar momentaneamente uma indústria ineficiente do que abrir mão de possuir indústrias. (BASTOS, 2023, p. 217-218)
Cabe ainda lembrar que todos os países asiáticos que galgaram elevados níveis de desenvolvimento o fizeram rechaçando o receituário neoliberal do famigerado Consenso de Washington, entoado pelas organizações do sistema interestatal capitalista global, destacadamente Banco Mundial e FMI [Vide nota de rodapé 2]. Um caso que exemplifica isso sobejamente é o da Coreia do Sul, abordado na seção 3 deste meu artigo.
Triste destino do nosso país, dominado por uma iníqua burguesia, a mais funesta, predatória e subserviente de todo o mundo ocidental, que nunca teve brio nem mesmo para implantar um capitalismo de verdade em nosso país (conforme sintetizo neste post), que atua majoritariamente no rentismo e no agronegócio, fantoche do grande capital internacional, e manietada por este para neutralizar qualquer mínimo arroubo de soberania econômica por parte dos nossos governantes.
BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA
BASTOS, Remo. Estratégias de desenvolvimento econômico para os países do Sul Global: fé cega no mercado ou política econômica soberana? Latitude, Maceió, v.17, n. 1, p.206-230, 2023. Disponível em: https://www.seer.ufal.br/index.php/latitude/article/view/14777/10905 .
BASTOS, Remo. Notas despretensiosas sobre o desenvolvimento nos países de industrialização tardia. Fortaleza, Nova Civilização, 2021.
CHERIF, Reda; HASANOV, Reda. The Return of the Policy That Shall Not Be Named: Principles of Industrial Policy. IMF Working Papers, March 26, 2019. Disponivel em: https://www.imf.org/en/Publications/WP/Issues/2019/03/26/The-Return-of-the-Policy-That-Shall-Not-Be-Named-Principles-of-Industrial-Policy-46710 .
GALA, Paulo; RONCAGLIA, André. Brasil, uma economia que não aprende. Novas perspectivas para entender nosso fracasso. São Paulo:[sn], 2020.
NOTAS DE RODAPÉ
1 “O Brasil se desindustrializou antes de ficar rico. Claro que nosso setor agropecuário e minerador são potencias, mas por si só serão insuficientes para trazer desenvolvimento econômico ao Brasil. Todas potências agrícolas no mundo são também potências industriais. A mineração e a agropecuária nunca representam mais do que 10% do PIB de qualquer país rico, e empregam em média somente 5% das pessoas em idade de trabalhar. Países muito pobres têm contingentes enormes de pessoas ainda na agricultura de subsistência não produtiva, muitas vezes acima de 25% da força de trabalho. No mundo todo, 50% dos empregos está concentrado em serviços não escaláveis que têm baixa produtividade. A diferença entre países ricos e pobres está nos outros 50%; quanto mais pessoas trabalhando em indústrias medium e high tech e serviços empresariais escaláveis, mais próspera a nação. Países ricos produzem serviços sofisticados como Uber, Netflix e Amazon; nós dirigimos Uber, assistimos Netflix e compramos na Amazon.” (GALA e RONCAGLIA, 2020, p. 32)
2 Num raro reconhecimento de seus erros, e "diante de resultados frustrantes de crescimento econômico de países mais pobres da América Latina e África, o próprio FMI vem questionando recentemente o sucesso das promessas feitas pelas doutrinas de corte mais liberal. Ainda mais recentemente, a mesma instituição resolveu radicalizar de vez e publicou o trabalho intitulado O retorno da política cujo nome ninguém ousa pronunciar: princípios de política industrial. O FMI recolocou sobre a mesa a importância da política industrial, políticas de estado para ajudar a sofisticação produtiva de países pobres e emergentes". (GALA e RONCAGLIA, 2020, p. 142) Pode ser que agora, “com o beneplácito do FMI”, possamos voltar a usar o termo política industrial sem termos tachados de anacrônicos.
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