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Foto do escritorRemo Bastos

Resenha do livro "The Deficit Myth" (O Mito do Déficit), da economista Stephanie Kelton

Atualizado: 7 de ago.




Em junho de 2020 foi lançado nos Estados Unidos o livro "The Deficit Myth" (O Mito do Déficit), de autoria da economista Stephanie Kelton, que foi Economista Chefe do Partido Democrata na Comissão de Orçamento do Senado daquele país entre 2015 e 2016, quando deixou o cargo para ser Assessora Econômica do então candidato Bernie Sanders na campanha presidencial de 2016. Neste livro, a autora delineia os principais fundamentos da Moderna Teoria Monetária (MMT, na sigla em inglês).


O livro imediatamente entrou na lista dos "best sellers" do New York Times e vem causando um impacto considerável não somente na mídia, mas também nos meios acadêmicos, por abalar alguns dos mitos mais arraigados do mainstream econômico. Sustenta a autora que:


1) Um país que emite a sua própria moeda não depende da arrecadação de impostos e nem da venda de títulos da "dívida" pública para gastar naquilo que julgar necessário. Não existe limite FINANCEIRO para o que ele queira comprar, desde que o pagamento seja feito na moeda que ele emite. (Mas não se trata de "almoço grátis". Existem limites sim, referentes à disponibilidade de recursos REAIS (físicos, tecnológicos, humanos, etc.), mas não FINANCEIROS. Mais abaixo, na resenha, eu detalho esses limites reais.)


2) Os impostos que pagamos não são receita para o governo federal. O governo não precisa do nosso dinheiro. Nós que precisamos do dinheiro dele. É tudo o contrário do que é difundido na doutrina econômica hegemônica e na mídia! Os impostos são importantes por outras razões que a autora explica neste livro, e eu contemplo logo abaixo, nesta resenha.


3) A "dívida" pública interna não representa nenhum ônus financeiro para o país, na realidade. E mais: a autora mostra, com dados históricos irrefutáveis (pg 89 e posteriores), que cada vez que o governo reduziu substancialmente a dívida interna, a economia entrou em recessão.


4) Ao contrário do mito de que déficits governamentais são sempre ruins porque afastam o investimento privado, na realidade, déficits fiscais aumentam o dinheiro nas mãos de pessoas físicas e empresas. Toda vez que o governo reduz drasticamente a dívida pública, a economia entra em recessão. Os déficits fiscais injetam dinheiro na economia. Desde que não sejam excessivos, eles podem ajudar a manter uma economia saudável, sustentando os rendimentos, as vendas e os lucros.


5) Os jornalistas econômicos da grande mídia alardeiam aos quatros ventos que programas sociais como SUS e INSS são financeiramente insustentáveis e que ameaçam o saneamento das contas públicas. Nada mais falso. Na REALIDADE, enquanto o governo federal se comprometer a fazer os pagamentos, ele SEMPRE PODERÁ arcar com esses programas (pois eles são pagos NA MOEDA QUE O PAÍS EMITE). O que importa é a capacidade de longo prazo da nossa economia para produzir os bens e serviços reais de que as pessoas precisarão.


Como era previsto, por atingir interesses dos que lucram com esses arraigados mitos, o livro tem sido atacado por parte da ortodoxia acadêmica e midiática nos Estados Unidos e em outros países, e surpreendentemente defendido por muitos economistas ortodoxos que, em ato de grandeza intelectual, tiveram a humildade de reformular suas posições teóricas, dentre os quais, no Brasil, nada menos que André Lara Resende, um dos economistas que criaram o Plano Real, e que hoje é um dos maiores divulgadores da MMT no Brasil, já tendo escrito recentemente livros e artigos sobre ela.


Infelizmente, decorridos mais de dois anos do seu lançamento nos Estados Unidos, o livro ainda não foi lançado em língua portuguesa, razão pela qual resolvi escrever uma resenha "livre" (num estilo mais leve e informal, com uma linguagem mais acessível) da obra e compartilhar com o(a)s amigo(a)s neste meu website.


(Em agosto de 2024 lancei um curso sobre a MMT, tendo esse livro como a base do curso. Para saber mais sobre esse curso, clique aqui.)


Segue a resenha.


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INTRODUÇÃO


A autora inicia o livro fazendo uma analogia entre o impacto da mudança de paradigma que Copérnico trouxe para a Astronomia e o impacto da necessária mudança de paradigma na economia no que se refere ao funcionamento das finanças de um país que emite a sua própria moeda.


Este livro usa as lentes da Teoria Monetária Moderna (MMT), da qual a autora tem sido um dos principais proponentes, para explicar essa mudança copernicana. Os principais argumentos que ela apresenta se aplicam a qualquer país monetariamente soberano - países como Estados Unidos, Reino Unido, Japão, Austrália, Canadá, Brasil e outros - onde o governo é o emissor monopolista de uma moeda fiduciária. A MMT muda a forma como vemos nossa política e economia mostrando que em quase todos os casos os déficits federais são bons para a economia. Eles são necessários. E a maneira como pensamos sobre eles e os tratamos é muitas vezes incompleta ou imprecisa. Em vez de perseguir o objetivo equivocado de um orçamento equilibrado, deveríamos buscar a promessa de aproveitar o que a MMT chama de dinheiro público, ou moeda soberana, para equilibrar a economia de modo que a prosperidade seja amplamente compartilhada e não concentrada em cada vez menos mãos.


O contribuinte, segundo a visão convencional, está no centro do universo monetário, por se acreditar que o governo não tem dinheiro próprio. Portanto, o único dinheiro disponível para financiar o governo deveria vir de pessoas como nós. A MMT muda radicalmente esse entendimento ao reconhecer que é o emissor da moeda - o governo federal, o próprio governo - não o contribuinte, que financia todos os gastos do governo. Os impostos são importantes por outras razões que ela explica neste livro. Mas a ideia de que os impostos pagam o que o governo gasta é pura fantasia.


Ela conta como ficou chocada e cética, como economista, quando tomou conhecimento disso, e como resolveu fazer uma profunda pesquisa com o objetivo de refutar essa teoria. Foi então que, nessa pesquisa, ela descobriu que muito do que ela aprendera como economista eram mitos que não encontram fundamento na real forma de como funciona as operações monetárias e fiscais de um país soberano.


Em certo sentido, a MMT é uma mera lente que descreve como nosso sistema monetário realmente funciona. Seu poder explicativo independe de ideologia ou partido político. Em vez disso, a MMT esclarece o que é economicamente possível e, assim, muda o terreno dos debates políticos que ficam paralisados por questões de viabilidade financeira.


A MMT se concentra nos impactos econômicos e sociais mais amplos de uma mudança de política proposta, em vez de apenas no seu impacto orçamentário restrito. O contemporâneo de John Maynard Keynes, Abba P. Lerner, foi um defensor dessa abordagem, que ele apelidou de finanças funcionais. A ideia era julgar a política econômica pelo modo como ela realmente funcionava. Ela controla a inflação, mantém o pleno emprego e promove uma distribuição mais equitativa de renda e riqueza? Ótimo então! O mero número específico, o saldo, que resulta do balanço orçamentário de cada ano era (e é) irrelevante.

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Capitulo 1: Não pense como uma família


MITO #1: O governo federal deve fazer um orçamento como uma família.

REALIDADE: Ao contrário de uma família, o governo federal emite a moeda que gasta.


Se você já ouviu alguém reclamar que o governo federal precisa colocar sua casa fiscal (seu orçamento) em ordem, você já ouviu uma versão do mito doméstico. Deriva da ideia equivocada de que devemos olhar para o orçamento do governo federal através das mesmas lentes que usamos para administrar nossos próprios orçamentos familiares. De todos os mitos que a autora explora neste livro, este é sem dúvida o mais pernicioso.


É o favorito entre os políticos, os economistas neoliberais e a mídia, que tendem a buscar a retórica mais simples possível para se conectar com os cidadãos comuns. E o que poderia ser mais fácil do que descrever as finanças do governo fazendo uma analogia com as finanças que nós conhecemos bem, ou seja, as nossas próprias finanças? Todos nós sabemos que é importante manter nossos gastos pessoais alinhados com nossa renda. Então, quando ouvimos alguém falar sobre as finanças do governo de uma forma que nos lembra as nossas, isso soa bem familiar e compreensível para nós.


Sabemos que as pessoas podem falir e também já vimos grandes empresas serem levadas à falência quando não podiam mais pagar as contas. Mesmo cidades e estados podem ter grandes problemas quando não estão trazendo dinheiro suficiente para cobrir suas despesas. Cada família sentada à mesa da cozinha entende essas realidades. O que eles não entendem é por que o governo federal é diferente.


Para entender o porquê, vamos direto ao coração da MMT.


- Emissores versus usuários de moeda


A MMT toma como ponto de partida um fato simples e incontestável: a moeda nacional de um país com soberania monetária (o dólar nos Estados Unidos, o Real no Brasil, a Libra Esterlina na Inglaterra, etc.) é criada pelo próprio país e não pode vir de nenhum outro lugar – pelo menos não legalmente. Tanto o Tesouro dos Estados Unidos (ou do Brasil, por exemplo) quanto seu agente fiscal, o Federal Reserve (ou o Banco Central, no Brasil), têm autoridade para emitir o dólar americano (o Real, no Brasil).


Isso pode envolver cunhar as moedas metálicas, imprimir as notas de dinheiro ou criar dólares (ou reais) digitais conhecidos como reservas que existem apenas como lançamentos eletrônicos em balanços bancários. Nos Estados Unidos, o Tesouro fabrica as moedas e o Federal Reserve cria o resto. Depois de compreender o significado dessa realidade, você será capaz de desvendar muitos dos mitos do déficit por conta própria.


Mesmo que você não tenha pensado muito nisso antes, algo dentro de você provavelmente já entende essa verdade básica. Pense nisso: Você pode criar dólares americanos (ou reais brasileiros)? Claro, você pode ganhá-los, mas pode fabricá-los? Talvez com equipamentos de gravação de alta tecnologia você possa montar uma gráfica em seu porão e produzir algo que se pareça muito com o dólar americano (ou o real brasileiro). Ou talvez você possa invadir o computador do Federal Reserve (ou do Banco Central no Brasil) e digitar alguns dólares (reais) digitais. Mas nós dois sabemos que você vai acabar preso se for pego tentando falsificar a moeda. Isso porque a Constituição dos Estados Unidos (e do Brasil) concede ao governo federal o direito exclusivo de emitir a moeda. O governo dos Estados Unidos (e o do Brasil) é o único fabricante de dólares (e de reais).


O termo monopólio se refere, claro, a um mercado no qual existe apenas um fornecedor de algum produto. Como o governo federal é o único fabricante de dólares americanos (e de reais), podemos pensar nele como tendo o monopólio do próprio dólar (e do real). É um poder exclusivo, previsto na Constituição do país. Não é algo que famílias, empresas ou governos estaduais e locais possam fazer. Somente o governo federal pode emitir nossa moeda. Os cidadãos e as empresas são apenas usuários da moeda. É um poder especial que deve ser exercido com muito cuidado.


A distinção entre o emissor da moeda e os usuários da moeda está no cerne da MMT. E, como veremos, tem profundas implicações para alguns dos mais importantes debates políticos de nosso tempo, como assistência médica, mudança climática, Seguridade Social, comércio internacional e desigualdade.


Para aproveitar ao máximo os poderes especiais atribuídos ao emissor da moeda, os países precisam fazer mais do que apenas conceder a si mesmos o direito exclusivo de emitir a moeda. Também é importante que eles não prometam converter sua moeda em algo que possa acabar (por exemplo, ouro ou moeda de outro país). E eles precisam abster-se de empréstimos (ou seja, assumir dívidas) em uma moeda que não é a sua.


Quando um país emite sua própria moeda não conversível (fiduciária) e só toma empréstimos em sua própria moeda, esse país alcançou a soberania monetária. Os países com soberania monetária, portanto, não precisam administrar seus orçamentos como uma família faria. Eles podem usar sua capacidade de emissão de moeda para buscar políticas destinadas a manter uma economia de pleno emprego.


A MMT nos ajuda a ver por que os países que fixam suas taxas de câmbio, como a Argentina fez até 2001, ou que assumem dívidas em moeda estrangeira, como a Venezuela, minam sua soberania monetária e se sujeitam aos tipos de restrições enfrentadas por outros usuários de moeda, como Itália, Grécia e outros países da zona do euro. Quando os países com pouca ou nenhuma soberania monetária falham em priorizar a disciplina orçamentária, eles podem enfrentar dívidas insustentáveis como uma família.


Ao contrário, os países com soberania monetária nunca precisam se preocupar em ficar sem dinheiro (na moeda que emitem). Sempre dá para pagar as contas, mesmo as grandes. Os países com soberania monetária não podem acabar como a Grécia, que abriu mão de sua soberania monetária ao deixar de emitir o dracma para usar o euro. Os países com soberania monetária não dependem de qualquer outro país (ou de qualquer outra pessoa) para custear suas despesas, desde que na moeda que eles emitem. Mais importante ainda, ter soberania monetária significa que um país pode priorizar a segurança e o bem-estar de seu povo sem precisar se preocupar em como pagar por isso.



MITO: (I+E)G = impostos e empréstimos precedem os gastos


MITO: “O dinheiro do governo vem do contribuinte. Se as pessoas quiserem mais de seu governo, terão que pagar mais impostos."


Será isso um erro inocente ou um mito cuidadosamente construído para desencorajar o povo de exigir mais de seu governo?


Para a maioria de nós, a ideia de que o governo deve tributar mais para gastar mais parece razoável. O dinheiro tem que vir de algum lugar, certo? Na verdade, a ordem correta do que realmente acontece é a contrária: o governo primeiro gasta e só depois tributa. Mas para compreendermos isso, vamos primeiro percorrer o entendimento convencional para que seja mais fácil contrastá-lo com a maneira como as coisas realmente funcionam.


Lembre-se de que as finanças que entendemos melhor são as nossas e sabemos que precisamos arranjar dinheiro antes de gastar. Assim, a ideia de que o governo federal deve arrecadar para gastar parece intuitivamente correta.


De acordo com o pensamento convencional, o governo depende de duas fontes de financiamento: pode aumentar seus impostos ou pode pedir emprestado ao mercado (emitir títulos da "dívida" pública). Os impostos permitem que o governo colete dinheiro das pessoas que o possuem, o que significa que os impostos são vistos como uma forma de transferir dinheiro para o governo federal. Se o governo quiser gastar mais do que arrecada com impostos, ele pode levantar fundos adicionais tomando empréstimos de poupadores (emitindo títulos). Em ambos os casos, a ideia é que o governo deve arranjar o dinheiro antes de poder gastar. É assim que a maioria de nós foi ensinada a entender as operações fiscais do governo. Impostos e empréstimos vêm em primeiro lugar. Os gastos vêm por último. Um mnemônico útil para a maneira convencional de pensar é (I+E)G = impostos e empréstimos precedem os gastos.


Será isto uma estratégia política? É economicamente correto? Certamente soa como uma abordagem saudável para o orçamento. Mas está enraizado em uma compreensão falha de como o governo federal realmente gasta. Na verdade, a ordem que efetivamente ocorre é a contrária.


Como o emissor da moeda gasta: G(I+E) = os gastos precedem impostos e empréstimos


Mesmo que nunca tenhamos pensando sobre como funciona o orçamento federal, provavelmente acreditamos que o governo precisa de nosso dinheiro para ajudar a pagar as contas.


Mas não é isso que acontece. Nossos impostos não pagam nada, pelo menos não no nível federal. O governo não precisa do nosso dinheiro. Nós que precisamos do dinheiro dele. É tudo o contrário do que é difundido na doutrina econômica hegemônica e na mídia!


Diz a autora: "Quando encontrei pela primeira vez essa maneira de entender como impostos e gastos funcionam na prática real, não acreditei. Era 1997 e eu estava no meio de um programa de doutorado em economia quando alguém compartilhou comigo um livrinho chamado Soft Currency Economics. O autor do livro, Warren Mosler, era um investidor bem-sucedido de Wall Street, não um economista, e seu livro era sobre como a profissão de economista estava entendendo quase tudo errado. Eu li e não fiquei convencida."


De acordo com Mosler, o governo gasta primeiro e depois tributa ou toma empréstimos (ou seja, o contrário do que é difundido na economia hegemônica e na mídia).


Pelo raciocínio de Mosler, o governo não sai por aí procurando alguém para pegar o dinheiro, ele apenas gasta sua moeda para que ela exista. Warren viu coisas que a maioria dos economistas não viu. Para muitos de nós, suas ideias inicialmente pareciam completamente originais, mas a maioria nem era. Elas eram apenas novas para nós. Acontece que elas podem ser encontradas (e nós os encontramos) em textos canônicos, como A Riqueza das Nações, de Adam Smith, ou o clássico de dois volumes de John Maynard Keynes, A Treatise on Money. Antropólogos, sociólogos, filósofos e outros chegaram há muito tempo a conclusões semelhantes sobre a natureza do dinheiro e o papel dos impostos, mas os economistas profissionais (propositalmente ou não) "pularam" essa parte.


Mosler é considerado o pai da MMT porque trouxe essas ideias para alguns de nós nos anos 90. Ele diz que chegou a esse entendimento após seus anos de experiência trabalhando nos mercados financeiros. Ele estava acostumado a pensar em débitos e créditos porque vinha negociando instrumentos financeiros e observando a transferência de fundos entre contas bancárias. Um dia, ele começou a pensar de onde deveriam ter vindo todos aqueles dólares. Ocorreu-lhe que, antes que o governo pudesse subtrair (debitar) quaisquer dólares de nós, ele deveria primeiro adicioná-los (crédito). Ele raciocinou que os gastos (do governo) deveriam ter vindo primeiro, caso contrário, onde alguém teria conseguido os dólares de que precisava para pagar o imposto?


Nas palavras da autora:


"Embora a lógica parecesse infalível, tive certeza de que sua história não podia estar certa. Como poderia? Virou de cabeça para baixo tudo o que eu achava que entendia sobre dinheiro, impostos e gastos do governo. Eu havia estudado economia com professores de renome mundial economistas da Universidade de Cambridge, e nenhum dos meus professores jamais disse algo assim. Na verdade, todos os modelos que eles me ensinaram eram compatíveis com a máxima de Thatcher de que os governos devem tributar ou tomar empréstimos antes de poderem gastar. Seria realmente possível que quase todos estivessem errados? Eu tinha que descobrir.


Em 1998, visitei Mosler em sua casa em West Palm Beach, Flórida, onde passei horas ouvindo-o explicar seu pensamento. Ele começou referindo-se ao dólar americano como “um simples monopólio público”. Uma vez que o governo dos Estados Unidos é a única fonte de dólares, era tolice pensar que ele precisava obter dólares do resto de nós. Obviamente, o emissor do dólar pode ter todos os dólares que quiser. “O governo não quer dólares”, explicou Mosler. “Ele quer outra coisa.”

“O que ele quer?” Eu perguntei.

“Ele quer se abastecer”, respondeu. “O imposto não existe para arrecadar dinheiro. Está lá para fazer as pessoas trabalharem e produzirem coisas para o governo.”

“Que tipo de coisas?” Eu perguntei.

“Um exército, um sistema judicial, parques públicos, hospitais, estradas, pontes. Este tipo de coisa."

Para levar a população a fazer todo esse trabalho, o governo impõe impostos, taxas, multas ou outras obrigações. O imposto existe para criar uma demanda pela moeda do governo. Antes que alguém possa pagar o imposto, alguém precisa trabalhar para ganhar a moeda."


Em seguida Mosler contou para a autora como criou "pequenos cartões" para servir de moeda doméstica que seus filhos usariam para pagar ao pai mensalmente, para ter direito de continuar a usar a piscina, assistir TV, e passear de triciclo.[1]


Como Mosler explicou, ele realmente não precisava coletar seus próprios cartões das crianças. “O que eu iria querer com meus próprios cartões?” ele perguntou. Ele já havia conseguido o que realmente queria com o negócio - uma casa arrumada! Então, por que ele se preocupou em taxar (subtrair) os cartões das crianças? Por que ele não as deixou guardá-los como lembranças? O motivo era simples: Mosler recolheu os cartões para que as crianças precisassem ganhá-los novamente no próximo mês. Ele havia inventado um sistema de abastecimento virtuoso! Virtuoso, neste caso, significa que continua repetindo.


Mosler usou essa história para ilustrar alguns princípios básicos sobre como os países emissores de moeda soberana realmente se financiam. Os impostos existem somente para criar uma demanda pela moeda do governo. O governo pode definir a moeda em termos de sua própria unidade de conta única - um dólar, um iene, uma libra, um peso, um real, etc. - e então dar valor ao seu próprio papel sem valor, exigindo-o no pagamento de impostos ou outras obrigações. Como brinca Mosler, “os impostos transformam lixo em moeda”. No final das contas, um governo emissor de moeda quer algo REAL, não algo monetário. Não é o dinheiro dos nossos impostos que o governo quer. É o nosso tempo. Para nos fazer produzir coisas para o Estado, o governo cria impostos ou outros tipos de obrigações de pagamento.


Esta não é a explicação que você encontrará na maioria dos livros de economia, onde predomina uma história superficial sobre o dinheiro sendo inventado para superar as ineficiências associadas à troca – troca de mercadorias sem o uso de dinheiro. Nessa história, o dinheiro é apenas um dispositivo conveniente que surgiu organicamente como uma forma de tornar o comércio mais eficiente. Embora os alunos aprendam que o escambo já foi onipresente, uma espécie de estado natural do ser, os antropólogos encontraram poucas evidências de que as sociedades já foram organizadas em torno do escambo, a MMT também rejeita esta a-histórica narrativa de troca.


Desde o início, a obrigação de pagar impostos gera pessoas em busca de trabalho remunerado na moeda do governo. O governo então gasta sua moeda, entregando às pessoas os recursos de que elas precisam para liquidar suas obrigações com o Estado. Obviamente, ninguém pode pagar o imposto até que o governo primeiro forneça esses recursos (a moeda). Como um simples ponto de lógica, Mosler explicou que a maioria de nós tem na cabeça a sequência errada. Os contribuintes não financiam o governo; o governo é que financia os contribuintes.


Nesse ponto a autora lembra de que quando, em sua infância, brincava de "Banco Imobiliario", o jogo não começava antes que "a banca" entregasse o dinheiro para os participantes.


Outra forma didática de entender como o governo gasta: Pense de onde vêm os pontos quando você joga um jogo de cartas ou vai a um jogo de basquete. Eles não vêm de lugar nenhum! Eles são apenas criados pelo operador do placar. Quando um jogador de basquete faz um arremesso atrás da linha de três pontos, três pontos são adicionados ao total do seu time. O operador do placar pega de algum lugar esses três pontos? Claro que não! O operador do placar não tem nenhum ponto. Para registrar o arremesso de três pontos, o operador do placar simplesmente muda o número para cima e o número aumenta no placar. É exatamente o que o governo faz ao "criar" dinheiro: simplesmente, num teclado de computador, credita a conta bancária do favorecido.


É por isso que o ex-presidente do Fed, Ben Bernanke, refutou a alegação de que os dólares dos contribuintes estavam sendo usados ​​para resgatar os bancos após a crise financeira de 2008. “Os bancos têm contas no Fed”, explicou. “Apenas usamos o computador para aumentar os saldos dessas contas.” Os contribuintes não resgataram os bancos. O "operador do placar" que o fez.


Confessa a autora: “É chocante, eu sei. Este é o nosso primeiro momento copernicano. Uma vez que você consegue ver que a capacidade de gasto do governo não depende do dinheiro do "contribuinte", todo o paradigma fiscal muda. Depois que você consegue, nunca mais vê as coisas da mesma maneira.”


Por que então o governo ainda cobra impostos e vende títulos no mercado financeiro?


Se o governo federal realmente pode fabricar todo o dinheiro que poderia desejar, então por que se preocupar em cobrar impostos e vender títulos no mercado financeiro?


Quatro razões importantes para a tributação:


1) Os impostos permitem que os governos se abasteçam sem o uso da força explícita.

2) Inflação. Se o governo gastasse muito dinheiro novo sem tributar nada das pessoas, isso causaria um problema de inflação. Não é a impressão (criação) de dinheiro em si, mas o gasto do dinheiro que importa. Se o governo quiser aumentar os gastos com saúde e educação, pode ser necessário remover parte do poder de compra do resto de nós para evitar que seus próprios gastos mais generosos elevem os preços. Uma maneira de fazer isso é coordenar gastos governamentais mais altos com impostos mais altos, de modo que o resto de nós seja forçado a cortar um pouco para criar espaço para gastos governamentais adicionais. Isso pode ajudar a administrar as pressões inflacionárias, equilibrando a pressão sobre a capacidade produtiva real de nossa economia.

3) Os impostos são uma maneira poderosa de os governos alterarem a distribuição de riqueza e renda. Concentrações extremas de riqueza e renda criam problemas sociais e econômicos. Por um lado, é difícil manter a economia forte quando a maior parte da renda vai para a minúscula camada mais rica da sociedade, no topo, que economiza (em vez de gastar) a maior parte de sua renda. O capitalismo funciona com vendas. É preciso uma distribuição razoável de renda para que as empresas tenham consumidores suficientes para se manterem lucrativas, fornecendo empregos suficientes para manter a economia funcionando bem. Concentrações extremas de riqueza também têm um efeito corrosivo em nosso processo político e em nossa democracia. Assim como os cortes de impostos dos ricos podem ser usados para exacerbar as desigualdades, os governos podem exercer sua autoridade tributária para reverter essas tendências perigosas.

4) Impostos são usados também para encorajar ou desencorajar certos comportamentos. Para melhorar a saúde pública, combater a mudança climática ou impedir a especulação arriscada nos mercados financeiros, os governos podem cobrar um imposto sobre o cigarro, um imposto sobre o carbono ou um imposto sobre transações financeiras. Os economistas costumam se referir a eles como "impostos sobre o pecado" porque são usados para impedir que as pessoas se envolvam em atividades prejudiciais. O propósito de um imposto sobre o pecado é desencorajar comportamentos indesejáveis – fumar, poluir ou especular excessivamente – e não arrecadar dinheiro para o emissor da moeda soberana. De fato, quanto mais eficaz for o imposto em desencorajar esses comportamentos, menos o governo acabará arrecadando, já que o imposto só é pago se o comportamento indesejado persistir.


Se o governo é autosuficiente em sua própria moeda, por que então ele vende títulos no mercado?


1) Ele opta por oferecer às pessoas um tipo diferente de dinheiro do governo, que paga um pouco de juros. Em outras palavras, os títulos do Tesouro do governo federal são apenas dinheiro que rende juros. Para comprar alguns desses "dinheiro que rendem juros do governo", primeiro você precisa da moeda do governo. Podemos chamar os primeiros de “dinheiro amarelo” e os últimos de “dinheiro verde”. Quando o governo gasta mais do que cobra de nós, dizemos que o governo tem um déficit fiscal. Esse déficit aumenta a oferta de dinheiro verde. Assim, se o governo gastar R$ 5 trilhões, mas apenas tributar R$ 4 trilhões, ele venderá R$ 1 trilhão em títulos do Tesouro para recolher esse "dinheiro verde" e equilibrar o orçamento. O que chamamos de "o governo tomando emprestado" nada mais é do que ele permitindo que as pessoas transformar "dinheiro verde" em dinheiro que rende juros.


Ou seja: A "dívida" do governo corresponde exatamente ao valor monetário dos títulos que ele vendeu no mercado, para que as pessoas pudessem ter uma forma de auferir rendimentos sobre seu dinheiro. Essa "dívida" na verdade, na realidade, nem é uma dívida, pois o governo pode pagá-la na hora que desejar, comprando de volta os títulos, coisa que ele faz regularmente. (Ver ótimo comentário da autora (pg. 88) sobre um artigo do economista Eric Lonergan perguntando: “E se o Japão comprasse de volta 100% dos seus títulos?”).


A dívida pública interna não representa nenhum ônus financeiro para o país, na realidade. E mais: a autora mostra, com dados históricos irrefutáveis (pg 89 e posteriores), que cada vez que o governo reduziu substancialmente a dívida interna, a economia entrou em recessão.


2) Ele vende títulos no mercado tambem para controlar (aumentar ou diminuir) as taxas de juros.


Então o governo pode gastar ilimitadamente?


Absolutamente não! A MMT não ignora os limites de gastos. Não é um "almoço grátis". Existem limites reais, e deixar de identificar – e respeitar – esses limites pode trazer grandes danos. A MMT trata de distinguir os limites reais das restrições auto-impostas, que temos o poder de mudar.


Os verdadeiros limites a serem respeitados:


Trata-se de substituir a doutrina econômica dominante, obcecada por artificiais resultados orçamentários, por outra que priorize os resultados econômicos, humanos e sociais, e ao mesmo tempo reconheça e respeite as REAIS restrições de RECURSOS (físicos e humanos) de nossa economia. Em outras palavras, a MMT REDEFINE o que significa engajar-se em um orçamento fiscalmente responsável.


Gastos excessivos se manifestam como inflação.


Um déficit só é evidência de gastos excessivos se provocar inflação. Se os preços não estão se acelerando, o déficit não deve ser considerado muito grande. O orçamento do governo não precisa ser equilibrado. Nossa economia é que deve ser. O orçamento é apenas uma ferramenta que pode ser usada para adicionar ou subtrair dinheiro do resto de nós. Um déficit fiscal adiciona mais dinheiro do que subtrai, enquanto um superávit fiscal subtrai mais dinheiro do que adiciona. A MMT fornece a evidência de que nenhum resultado orçamentário é inerentemente bom ou ruim. É um ato de equilíbrio, e o objetivo é permitir que o orçamento do governo se movimente de forma a proporcionar uma economia amplamente equilibrada para a população a quem deve servir.


Houve uma época, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, em que muitos bancos centrais, incluindo o dos Estados Unidos (Federal Reserve), afirmaram que controlando diretamente o crescimento da oferta monetária, eles poderiam controlar a inflação. Hoje, praticamente todos os bancos centrais adotaram uma abordagem diferente, visando uma taxa básica de juros que deveria ajudá-los a administrar indiretamente as pressões inflacionárias.


Os economistas por trás da MMT reconhecem que existem limites reais para os gastos e que tentar ir além desses limites pode se manifestar em inflação excessiva. No entanto, acreditam que existem maneiras melhores de administrar esses tipos de pressões inflacionárias e que isso pode ser feito sem prender milhões de pessoas no desemprego perpétuo. Uma delas é usar o verdadeiro pleno emprego para ajudar a estabilizar os preços.


O governo precisa realmente atentar para os perigos causados pelo excesso de gastos, mas esses perigos precisam ser corretamente identificados, para que não se incorra na desastrosa prática de "jogar fora o balde com a água e o bebê dentro, em vez de jogar fora apenas a água".


Para agir corretamente, com responsabilidade social e fiscal, o governo precisa pensar e agir como um EMISSOR DE MOEDA (que é o que ele de fato é), não como um USUÁRIO DE MOEDA (pessoas e empresas). Dessa forma, ele precisa, em prol de toda a sociedade, lançar mão da SOBERANIA MONETÁRIA que só ele possui internamente (dentro do país) e gastar sem preocupação excessiva e infundada nas áreas que a nação precisa para sustentar o desenvolvimento econômico e social, ao mesmo tempo monitorando os riscos reais de inflação excessiva.


Existe uma recomendação da ortodoxia econômica de que cada gasto governamental deve ser financiado com um respectivo crédito advindo de aumento (ou criação) de imposto ou de renúncia de outra despesa.


Em um exemplo hipotético, supomos que certo governo precisa construir obras de infraestrutura reivindicadas pela sociedade como necessárias para o desenvolvimento do país, porém a economia já esteja perto de seu limite máximo de recursos produtivos ocupados, com a maioria dos trabalhadores e empresas já produzindo tantos bens e serviços quanto possível.


Atentando para a recomendação da ortodoxia econômica de que cada gasto governamental deve ser financiado com um crédito que lhe corresponda, esse governo consegue junto ao Congresso Nacional a aprovação do aumento na alíquota de algum imposto cuja previsão de arrecadação permite financiar a obra em questão. O que acontece em seguida pode ser catastrófico.


Como já está esgotada a capacidade produtiva real da economia (para o setor em questão), a única forma de o governo conseguir trabalhadores da construção civil, arquitetos e engenheiros, aço, concreto, caminhões de pavimentação, guindastes, etc. seria pagando mais caro para estes trabalhadores para eles trocarem de empregador. Com o aumento na procura dos insumos físicos (aço, concreto, caminhões de pavimentação, guindastes, etc.) os preços destes também aumentariam. Esse aumento de preços de mão de obra e insumos contribuiria para o aumento da inflação.


Isso não teria acontecido se o governo tivesse seguido as recomendações de economistas da MMT, pois esta é exatamente o tipo de situação em que a MMT desaconselharia esse tipo de investimento, pelo fato de que os recursos físicos e humanos necessários para o empreendimento já estavam sendo plenamente empregados.


É por isso que a MMT recomenda uma abordagem diferente para aferir a viabilidade de um gasto governamental, uma que integre o risco de inflação ao processo de tomada de decisão, avaliando os níveis de desemprego de trabalhadores e de ociosidade da indústria, para somente depois tomar a decisão adequada, protegendo assim a sociedade contra o risco de inflação antes de aprovar qualquer novo gasto.


Fica assim claro, no que se refere ao limite de gastos do governo, que este deve se preocupar com a restrição REAL (o nível de ocupação dos recursos e de aquecimento da economia), e não com restrições ARTIFICIAIS (déficit ou superávit de orçamento, na moeda que o país emite), pois nenhum resultado orçamentário (déficit ou superávit) é inerentemente bom ou ruim.


Exatamente por isso deixar de investir em áreas essenciais para o desenvolvimento econômico e social do país, numa época de desemprego e recessão em que o país se encontra, usando a desculpa da inflação (que não subirá enquanto perdurarem os atuais desemprego e recessão), apenas agravará a crise econômica e social.


Manter artificial e desnecessariamente desemprego e recessão tem um preço: deprime nosso bem-estar coletivo, privando-nos do que poderíamos desfrutar se o Estado fizesse bom uso dos recursos reais disponíveis. É preciso aproveitar o poder de criação de moeda do nosso país para construir uma economia que atinja todo o seu potencial. Gastar demais é um abuso de poder, mas também o é recusar-se a agir quando mais pode ser feito para elevar a condição humana sem arriscar a inflação.

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O saldo "vermelho" do governo é o saldo "preto" de pessoas físicas e empresas.


MITO #4: Déficits governamentais afastam o investimento privado.

REALIDADE: Déficits fiscais aumentam o dinheiro nas mãos de pessoas físicas e empresas.


Em sua forma mais comum, o mito do crowding-out diz que os déficits fiscais exigem que o governo venda títulos de sua "dívida" (tome empréstimos), o que o forçaria a competir com outros possíveis tomadores de empréstimos. Como todos competem por um suprimento limitado de poupança disponível, os custos dos empréstimos subiriam. Com as taxas de juros em alta, alguns tomadores de empréstimos – especialmente empresas privadas – não conseguiriam obter financiamento para seus projetos. Isso faria com que o investimento privado caisse, levando a um futuro onde haveria menos fábricas, máquinas e assim por diante. Com um estoque menor de bens de capital, a sociedade acabaria tendo uma força de trabalho menos produtiva, um crescimento salarial mais lento e uma economia menos próspera. Parece ameaçador!


Na seção "Two Buckets" (Dois Baldes, pg. 97) ela desmistifica este embuste.


Os títulos emitidos pelo governo, que supostamente sugariam as poupanças guardadas pelos poupadores, na verdade fazem parte da riqueza mantida pelos poupadores. Como revela o modelo de Godley, os déficits governamentais sempre levam a um aumento nos ativos financeiros líquidos das pessoas e das empresas. Isso não é uma teoria. Isso não é uma opinião. É apenas a dura realidade da contabilidade consistente de fluxo de estoque.


Portanto, os déficits fiscais – mesmo com empréstimos do governo – não podem causar uma oferta menor de recursos a serem emprestados. E se isso não pode acontecer, então um conjunto cada vez menor de poupança em dinheiro não pode ser responsável por aumentar os custos dos empréstimos.


Claramente, isso representa um problema para a teoria convencional do crowding-out, que afirma que os gastos do governo e o investimento privado competem por um pool finito de poupança.


A razão pela qual o mito do crowding-out não está em sintonia com a realidade é que ele nos pede para tratar o governo federal como um usuário de moeda. Quando rejeitamos essa lente ingênua, vemos que países emissores de sua própria moeda não dependem de empréstimos para se financiar, nem estão à mercê de investidores privados quando vendem títulos. Como diz Kelton,


“O governo federal não é um mendigo, que deve andar de chapéu na mão, em busca de financiamento para sustentar seus gastos desejados. Ele é um emissor de moeda forte! Ele pode optar por tomar emprestado (vender títulos) ou não, e o Congresso (por meio do Banco Central) sempre pode decidir qual taxa de juros pagará sobre quaisquer títulos que decida oferecer. Isso não é verdade para todos os países, mas é verdade para aqueles com soberania monetária.”


Do ponto de vista da MMT, o objetivo da venda de títulos não é “financiar” os gastos do governo (que já ocorreram), mas evitar que uma grande infusão de reservas pressione a taxa de juros overnight abaixo da meta do Banco Central. A venda de títulos é totalmente voluntária no sentido de que o Congresso sempre pode decidir fazer as coisas de maneira diferente.


No inicio dos anos 1990 Clinton eliminou o déficit do governo. Contudo, lembre-se, do outro lado de todo superávit financeiro está um déficit financeiro de igual tamanho. Isso significa que "o saldo preto" do governo se tornou "o saldo vermelho" da sociedade (cidadãos e empresas). Os superávits de Clinton forçaram os estadunidenses a sacrificar alguns dos dólares que estavam economizando. A história do crowding-out é completamente o oposto do que se propaga. São os superávits fiscais, não os déficits fiscais, que consomem nossa (pessoas fisicas + empresas) poupança financeira.

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Toda vez que o governo reduz drasticamente a dívida pública, a economia entra em recessão


Os superávits fiscais sugam o dinheiro da economia. Déficits fiscais fazem o oposto, injetam dinheiro da economia. Desde que não sejam excessivos, os déficits podem ajudar a manter uma boa economia, sustentando os rendimentos, as vendas e os lucros. Não são imperativos, mas se desaparecerem por muito tempo, fatalmente a economia bate num muro. Como Frederick Thayer, professor de relações públicas e internacionais da Universidade de Pittsburgh, escreveu em 1996: “os Estados Unidos passaram por seis depressões econômicas significativas” e “cada uma foi precedido por um período sustentado de equilíbrio orçamentário”.


Os Estados Unidos experimentaram um breve período (1998-2001) de superávits fiscais sustentados. Aconteceu durante a presidência de Bill Clinton, e muitos democratas ainda olham para trás como uma conquista importante. A tinta vermelha foi eliminada e "o Tio Sam voltou ao preto" pela primeira vez em décadas. Os superávits começaram em 1998 e, em 1999, a Casa Branca estava pronta para festejar como se fosse algo muito bom. No ano seguinte, os economistas da Casa Branca começaram a trabalhar em um relatório intitulado “Vida após a dívida”, que seria usado na hora de anunciar a notícia comemorativa de que os Estados Unidos estavam a caminho de quitar toda a dívida nacional até 2012.


A princípio, pagar a dívida parecia o tipo de feito que poderia merecer um desfile nacional. A Casa Branca estava se preparando para apresentar a notícia em seu Relatório Econômico Anual do Presidente. Mas então todos ficaram com medo, e um capítulo do relatório foi escondido da vista do público. Só sabemos disso porque o Planet Money, da National Public Radio, “obteve um relatório secreto do governo descrevendo o que antes parecia uma crise potencial: a possibilidade de o governo dos Estados Unidos pagar toda a sua dívida”. A razão? Eles estavam preocupados com as implicações mais amplas de acabar com todo o mercado de títulos do Tesouro dos Estados Unidos. Foi um retorno à relação de amor e ódio que muitos políticos têm com a dívida nacional.


Por um lado, a Casa Branca adoraria eliminar a dívida nacional. Por outro lado, não podia correr o risco de se livrar de todos os títulos do Tesouro. O que mais preocupava os formuladores de políticas era a perspectiva de privar o Federal Reserve do instrumento-chave do qual ele dependia para conduzir a política monetária – a dívida do governo. Na época, o Fed contava com títulos do governo para administrar a taxa de juros de curto prazo. Quando o Fed quer aumentar as taxas de juros, vende alguns de seus títulos do Tesouro. Os compradores pagaram por esses títulos usando uma parte de suas reservas bancárias. Ao remover reservas suficientes, o Fed pode aumentar a taxa de juros. Para cortar as taxas, o Fed faz o oposto, comprando títulos do Tesouro e pagando por eles com reservas recém-criadas. Sem os títulos do Tesouro, o Fed precisa encontrar outra forma de definir as taxas de juros.


O lado descritivo da MMT


O entendimento de como funcionam os órgãos do corpo humano precedem o diagnóstico de um médico. Antes que os médicos possam prescrever um tratamento para um paciente doente, eles devem primeiro estabelecer um conhecimento prático de como o corpo funciona. Isso significa aprender sobre o sistema circulatório, o sistema digestivo, o sistema nervoso e assim por diante. Somente depois que os alunos de Medicina demonstraram competência em sua compreensão de como o corpo humano funciona é que permitimos que eles se tornem médicos e prescrevam receitas para os pacientes.


O problema que temos hoje é que a política econômica é muitas vezes prescrita por pessoas que, apesar de possuírem diplomas avançados em economia, não possuem uma compreensão real de como nosso sistema monetário funciona. Ao oferecer a estrutura descritiva correta, a MMT nos ajuda a ver uma gama mais ampla de tratamentos de políticas que podem tornar nossa economia mais forte e saudável.


O que a MMT descreve é a realidade do nosso sistema monetário pós-Bretton Woods. Não estamos mais no padrão-ouro e, no entanto, muito do nosso discurso político ainda está enraizado nesse modo de pensar antiquado. Vemos isso toda vez que um repórter pergunta a um político: Onde você encontrará dinheiro para fazer isso? Já passou da hora de entendermos o que significa ser o emissor de uma moeda fiduciária soberana. Para o emissor da moeda, dinheiro não é problema. Literalmente ou figurativamente. Não existe em alguma forma física escassa - como o ouro - que o governo precisa “encontrar” para gastar. Basta usar um teclado de computador para o governo realizar um pagamento.


Isso pode soar como um almoço grátis. Não é. A MMT não é um cheque em branco. Não nos dá carta branca quando se trata de financiar novos programas. E não é uma conspiração para aumentar o tamanho do governo. Como uma estrutura analítica, a MMT trata de identificar o potencial inexplorado em nossa economia, o que chamamos de nosso espaço fiscal.


Se há milhões de pessoas procurando trabalho remunerado e nossa economia tem capacidade para produzir mais bens e serviços sem aumentar os preços, então temos espaço fiscal para trazer esses recursos para empregos produtivos. Como escolhemos utilizar esse espaço fiscal é uma questão política, e aqui a MMT pode ser usada para defender políticas que são tradicionalmente mais progressistas (por exemplo, SUS, universidades públicas, etc.) ou mais conservadores (por exemplo, gastos militares ou cortes de impostos das empresas). Na feliz metáfora da autora:


“A questão é que administramos nossa economia como um cara de um metro e oitenta de altura que perambula perpetuamente curvado em uma casa cuja altura mede dois metros e meio porque alguém o convenceu de que, se ele tentar ficar de pé, sofrerá um grande traumatismo craniano. Por muitos anos, estivemos agachados quando poderíamos estar firmes. Medos irracionais sobre a dívida do governo e os déficits fiscais fizeram com que os formuladores de políticas nos Estados Unidos, Japão, Reino Unido e outros lugares mudassem do estímulo fiscal para a austeridade nos anos seguintes à crise financeira global. Isso forçou uma dor imensurável em dezenas, senão centenas, de milhões em todo o mundo.”


O livro possui ainda alguns capítulos que não contemplei nesta resumida resenha, dentre os quais um sobre o Programa de Garantia de Emprego, uma proposta de política econômica que visa fornecer uma solução sustentável para a inflação e o desemprego. Seu objetivo é criar pleno emprego e estabilidade de preços, fazendo com que o Estado prometa contratar trabalhadores desempregados como empregador de último recurso.


O livro pode ser adquirido clicando neste link: https://www.amazon.com.br/Deficit-Myth-Monetary-Peoples-Economy/dp/1541736184 (a versão digital, em kindle, sempre é mais barata)


Para aquele que não lêem em inglês, a Editora Nova Civilização lançou o único livro em língua portuguesa (pelo menos até agora) sobre a MMT, segue o link para adquiri-lo: https://vestseller.com.br/teoria-monetaria-moderna-mmt-1354.html


A Editora Nova Civilização traduziu e lançou um livro em língua portuguesa escrito por Warren Mosler, o investidor que abriu os olhos da autora sobre a MMT. Segue o link para adquiri-lo: https://vestseller.com.br/as-sete-inocentes-fraudes-capitais-da-economia-1362.html

[1] Um exemplo histórico dessa estratégia foi o que a Inglaterra fez com suas colônias da África oriental durante o século XIX. "As plantações detidas por ingleses necessitavam de mão-de-obra barata, mas os africanos estavam relutantes em trabalhar pelos reduzidos salários oferecidos. De modo a forçar os nativos a trabalhar, os britânicos introduziram um imposto que era legalmente aplicado e que podia apenas ser pago através do trabalho numa plantação. A relação entre os salários pagos pelas plantações e a taxa do imposto pretendia assegurar uma oferta constante de mão-de-obra" (Moore, Stephen (2002), Sociologia, Mem Martins: Publicações Europa-América, p.245.



1 Comment


magno_branco
Jun 26

Estou lendo o livro e achei a resenha muito boa! (Se puder resenhar os demais capítulos...)


Um ponto que merece destaque é que a resenha explicita que não estamos mais no padrão ouro de Bretton Woods e que ser emissor de moeda fiduciária soberana muda por conpleto o status do déficit. Compreender tal mudança, como bem enfatiza a resenha, revela-se a chave para deixarmos de vestir desnecessariamente certas camisas de força impostas pela ideologia da austeridade econômica.

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